quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Em exclusivo: o primeiro capítulo!

Prólogo
31 DE DEZEMBRO
Véspera de Ano Novo
Flood Street, Richmond
11h25

O que primeiro me chamou a atenção foi a capa negra revolta, ondeante, a agitar-se atrás da figura ameaçadora. Ia a caminho de casa, vindo do parque, quando a vi e estaquei o passo. Havia algo ou alguém a cambalear pela minha rua acima. “A Morte?”
Estivera com o Boges, a dar uns pontapés na bola, e regressava agora a casa para ajudar a pôr as malas no carro, para aquilo a que a minha mãe chamava de “as tropelias de família habituais de Ano Novo” na costa norte em Treachery Bay. Pobre Boges, ia ficar em casa com a mãe e a avó. Provavelmente, iam-se esforçar por permanecer acordadas a assistir aos fogos-de-artifício das nove horas na televisão. A minha noite ia ser dura, mas pelo menos íamos estar longe, ao largo no barco.
O alvoroço do fundo da rua começava a aproximar-se. Quando a figura agitada se acercou, vi que se tratava de um homem de aspecto grisalho, a murmurar. Trazia um roupão escuro e caminhava de forma estranha, enviesada, como se estivesse desequilibrado e aturdido. Estava a preparar-me para atravessar a estrada para o evitar quando percebi o que ele estava a dizer. Com um baque de medo, dei-me conta de que era a mim que procurava!
– Cal! – gritou. – Callum Ormond!
Tropeçou na minha direcção, com os olhos desvairados quase a saírem das órbitas. Fê-lo meio a cambalear, meio a correr, estendendo braços ansiosos à sua frente.
Uma sirene gemia ao longe e no espaço de segundos uma ambulância com as luzes de emergência ligadas assomou na outra ponta da rua, a vir na nossa direcção, a toda a velocidade.
O louco estava quase em cima de mim. Conseguia sentir-lhe o hálito malcheiroso, bafiento.
– Mantém-te longe, Callum! – cuspiu, com baba a escorrer-lhe da boca aberta. – Mataram o teu pai. Estão-me a matar a mim!
O coração imobilizou-se-me no peito. Quem era este tipo? Estaria a falar do vírus? A referência ao
meu pai trouxe uma vaga de dor tão imensa que me deixou a cabeça a andar à roda. O homem precipitou-se para cima de mim.
– Quem é o senhor? – gritei, a empurrá-lo para me largar. – Do que é que está a falar? De onde é que conhece o meu pai?
A ambulância estacou ruidosamente ao pé de nós e, antes que o homem me pudesse voltar a agarrar, dois paramédicos saltaram para fora dela. O primeiro derrubou-o enquanto o segundo tirava algo da mala. No chão, o louco agarrava-se aos meus pés com desespero.
– Quem é o senhor? – voltei a gritar. – Ninguém matou o meu pai; ele estava doente!
– Deixa isto connosco, jovem – disse o primeiro paramédico, um homem de aspecto grosseiro que
mais parecia um lutador profissional. – Ele não sabe o que diz. Tens de sair daqui, estás a estorvar.
Dominado no chão, o homem estava encurralado; contudo, quando o segundo paramédico lhe forçou uma injecção no braço enfraquecido, ele conseguiu contorcer-se e virar-se para mim. Tinha o rosto crispado e as veias no pescoço a latejar e salientes.
Olhou-me nos olhos.
– A Singularidade de Ormond – afirmou, entre arquejos.
– Não permitas que te mate também, rapaz!
Vai-te embora! Foge! Esconde-te e não dês nas vistas até à meia-noite do dia 31 de Dezembro do próximo ano. Não sabes o que estás a enfrentar. Ouve-me! Por favor! 365 dias, Cal. Tens 365 dias!
– Até o quê? O que estou eu a enfrentar? – As palavras ameaçadoras do louco tinham-me abalado até ao âmago.
– Do que está a falar? – perguntei, ansiosamente.
– E o que é a Singularidade de Ormond? Como sabe quem eu sou? Diga-me, quem é o senhor?
O médico lutador profissional ladeou-me com uma maca e, com um movimento rápido na direcção do homem, empurrou-me para fora do caminho, dizendo:
– O nosso paciente está muito doente e tem a mente afectada. Deixa isto connosco e segue o teu percurso!
Com uma força sobre-humana, o doente libertou-se das garras dos médicos. Tinha os olhos muito
abertos, aterrorizados.
– Se não desapareceres, vais ter de lhes resistir um ano inteiro! Sabes o que isso signifi ca? Eles vão
estar 365 dias no teu encalço! Semana após semana! Dia após dia!
A confusão e o medo que sentia intensificaram -se. “Eles?” Quem eram “eles”?
– Está a falar do quê? – voltei a perguntar. – Quem é que está atrás de mim?
A vaga de força repentina do enfermo esvaiu-se. Os médicos apressaram-se a prendê-lo à maca. A cabeça dele tombou para um lado e as pálpebras pestanejaram, a lutar furiosamente contra o sedativo que lhe invadia a corrente sanguínea. A voz prosseguiu num sussurro inquietante e áspero:
– Callum, a Singularidade de Ormond. Os outros já sabem. Eles sabem que o teu pai te contactou. Eles vão-te matar. Tens de te esconder até ao dia 31 de Dezembro do próximo ano. Faz com que a tua família se vá embora. Até à meia-noite do último dia do ano… é nessa altura que a Singularidade se esgota. Até lá não estás seguro. Vais ter de sobreviver de uma maneira ou de outra.
Os olhos dele reviraram-se e o corpo desfaleceu. Os paramédicos levaram-no.
– Não ligues – gritou o segundo paramédico. – O coitado há dias que sofre de alucinações. Só vem a piorar. Não deixes que te preocupe.
Ao ser empurrado para a parte de trás da ambulância, o homem ergueu a cabeça uma última vez.
– Cal – gemeu –, 365 dias. Assim que eles… o anjo… tens de… pelo Tom…
As portas foram fechadas com força e a ambulância arrancou a todo o gás.
Em poucos instantes, instalou-se o silêncio. Permaneci ali, sozinho e perplexo. Era como se nada tivesse acontecido. Os únicos ruídos eram agora o ladrar distante de um cão e o sussurro das folhas das árvores que orlavam a rua.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010